quarta-feira, dezembro 09, 2009

Identificação baseada em DNA ("DNA-based id")


Algumas impressões sobre o encontro sobre DNA barcoding que ocorreu na FAPESP na semana passada e outras histórias do passado:

Além do meu interesse em falar um pouco mais deste assunto, fui provocada pela Maria Guimarães (via comentário na postagem anterior), a compartilhar minhas impressões sobre a técnica de análise de DNA barcodes (no original "...o que você acha dos barcodes? o simpósio mudou alguma coisa na tua percepção?"). Aliás, recomendo uma visita ao blog da Maria (ciência & idéias) para ver o relato - muito bom - que ela faz sobre o encontro.

Maria, o simpósio não mudou muito a minha percepção sobre as análises de DNA barcodes... na verdade, eu venho acompanhando discussões nessa área há algum tempo e fico atenta a algumas mudanças no discurso original (face às inúmeras discussões e polêmicas que os artigos originais de 2003 promoveram) e, claro, aos avanços obtidos nas áreas de caracterização de biodiversidade e outras aplicações menos audaciosas - mas muito interessantes do ponto de vista científico (como você bem comentou o exemplo apresentado pelo Dr. Eduardo Eizirik sobre a identificação de itens de dieta alimentar de felinos através desta técnica).

A primeira vez que vi o Paul Hebert (idealizador da "proposta" de utilizar um trecho que gene COI como "identificador" taxonômico) foi no congresso da Sociedade Americana de Entomologia (ESA) de 2004, em Salt Lake City, onde ele proferiu uma palestra com o título: "Probing life diversity with DNA barcodes" (dá para acessar um arquivo gravado desta palestra se você for membro da sociedade). A reação da platéia (sistematas, taxonomistas, geneticistas e outras criaturas do mundo da entomologia) foi bem crítica, com vários questionamentos sobre a validade da metodologia proposta e sua pretensa "universalidade" para resolver todos os problemas de identificação do mundo biológico. Na platéia estava um pesquisador que eu admiro muito, Dr. Felix Sperling (atualmente na Universidade de Alberta, no Canadá), que possui um amplo conhecimento científico sobre taxonomia e sistemática de borboletas, marcadores moleculares e evolução. O Dr. Sperling apresentou uma série de recomendações (ele era famoso por tecer seus comentários na forma de recomendações, e foi um dos primeiros críticos da idéia de P. Hebert no seu formato original) que poderiam trazer maior "robustez" à análise de DNA barcodes: obter a caracterização de uma região maior do DNA mitocondrial (não apenas de 650 pares de bases do gene COI); usar outros métodos além do Neighbor-joining para obter árvores filogenéticas e etc. (minha memória não vai muito além...). Enfim, a impressão que tive na época foi de que P. Hebert foi divulgar sua idéia em uma comunidade não muito receptiva, onde pesquisadores com uma longa história na análise de marcadores moleculares, incluíndo sequências de COI e outros genes mitocondriais, divergiam da idéia de que seria possível identificar um marcador UNIVERSAL para discriminar todas as espécies animais.

P. Hebert continua até hoje este esforço de divulgação da sua proposta (frente a platéias menos resistentes, talvez) com a intenção de criar novas oportunidades de incorporar uma etiqueta de identificação molecular às diferentes espécies que compõm a  biodiversidade existente no planeta (com um foco sobre os ditos países megadiversos, claro).  Mas o discurso já mudou bastante (inclusive já havia mudado em 2004, como bem havia observado o Dr. Sperling, com relação aos artigos originais): a taxonomia - baseda na análise de caracteres morfológicos - permanece como uma força importante que não será substituída pela análise do DNA; outros genes (além de COI) têm sido incorporados à análise dita de DNA barcodes (16S e outros genes mitocondriais, regiões nucleares como ITS, etc.); outros métodos de análise dos dados foram incorporados (a análise de redes de haplótipos apareceu em uma das palestras), enfim, o DNA barcoding "stricto senso" parece que está se modificando em prol de uma abordagem mais ampla e - possivelmente - mais informativa. Esta é uma das minhas impressões sobre o que foi apresentado no evento.

Uma coisa que me incomoda um pouco é a idéia de novidade contida na análise de "DNA barcodes"... há certamente uma caráter inovador nesta proposta: a questão da larga-escala é novidade. Obter etiquetas moleculares para 10.000 espécies de aves é uma proposta que pode ser operacionalizada a partir de uma plataforma similar às utilizadas em genômica. Associar estudos de caracterização de biodiversidade com  plataformas de sequenciamento de DNA foi uma "sacada" de mestre pois otimiza de forma significativa a obtenção de informações genéticas específicas (= da espécie).

Por outro lado, muito que que tem sido identificado como contribuição da análise de DNA barcodes é, no meu entender, um legado das análises de marcadores moleculares de forma geral. Me incomoda um pouco o fato de se confundir uma análise tipicamente de Sistemática ou Filogenia Molecular (que seria a tataravó do DNA barcode) com a idéia do barcode. Da mesma forma, identificações taxonômicas baseadas em DNA (em inglês, DNA-based id) são abordagens que já vêem sendo conduzidas há mais de 15 anos (isso com relação a insetos, se formos falar de microorganismos, esta prática deve ter mais de 30 anos). Então neste ponto, não há novidade. Volto a falar do Dr. Sperling para citar um artigo que ele publicou em 1994 (quase 10 anos antes de P. Hebert cunhar o termo DNA barcodes) onde ele identifica uma série de espécies de importância forense (Sperling, FAH , GS Anderson and DA Hickey (1994). A DNA-based approach to identification of insect species used for postmortem interval estimation. Journal of Forensic Sciences 39: 418-427). Outro estudo interessante que conta com a participação do Dr. Sperling trata da caracterização estrutural e evolutiva de um trecho do DNA mitocondrial (envolvendo os genes COI e COII) de insetos (Caterino, MS, S Cho and FAH Sperling (2000). The current state of insect molecular systematics: a thriving Tower of Babel. Annual Review of Entomology 45: 1-54).

Ainda algumas outras publicações com o título que remete à identificação baseada em DNA:

2001. Wells, J.D., and F.A.H. Sperling. DNA-based identification of forensically important Chrysomyinae (Diptera: Calliphoridae). Forensic Science International 3065: 110-115;

2001. Wells, J.D., T. Pape, and F.A.H. Sperling. DNA-based identification and molecular systematics of forensically important Sarcophagidae (Diptera). Journal of Forensic Sciences 46: 1098-1102;

2001. Wells, J.D., F. Introna, Jr., G. Di Vella, C.P. Campobasso, J. Hayes, F.A.H. Sperling. Human and insect mitochondrial DNA analysis from maggots. Journal of Forensic Sciences 46: 685-687

Enfim, acredito que a análise de DNA barcodes possui em enorme potencial, mas seu impacto será maior ou menor de acordo com os diferentes desafios que diferentes grupos taxonômicos apresentam e é necessário termos consciência disso. Além disso, há desafios e mistérios (mais ou menos conhecidos) que assombram o mundo do DNA e dos marcadores moleculares, como os pseudogenes. Como eles podem ser importantes nesta discussão sobre DNA barcoding? Uma revisão importante surgiu recentemente num artigo intitulado: "Many species in one: DNA barcoding overestimates the number of species when nuclear mitochondrial pseudogenes are coamplified" (PNAS, 2008 vol. 105 no. 36 13486-13491). Quem me alertou sobre este artigo foi o Professor Dalton de Souza Amorim, durante participação em outro encontro promovido pela FAPESP na ocasião dos 10 anos do programa Biota (Biota +10).

Vai uma foto que obtive num dos site do Professor Felix Sperling, deve ser de uns 10 anos atrás, pois ele está bem do jeito que o conheci em 2000 no Congresso Internacional de Entomologia que foi em Foz de Iguassú. Foi nesse congresso que ele me mostrou o artigo do Caterino et al. 2000 (e eu estava toda feliz com a publicação do meu segundo artigo), e em anos posteriores tive a oportunidade de re-encontrá-lo em outros eventos científicos. Pena que esse ano não vou conseguir participar do Encontro da Sociedade Americana de Entomologia (que ocorre na próxima semana em Indianápolis). Enfim, Cinderela já virou abóbora a essas horas e amanhã cedo ainda tenho que dar aula... Maria, obrigada pela provocação. um abraço aos eventuais leitores deste espaço.



3 comentários:

maria disse...

adorei, obrigada pela bela contribuição!

Juliana disse...

Oi Ann

Adorei a sua visão crítica e sensata.
Também acho que os barcodes têm um grande potencial, mas ainda tem muita água pra passar por debaixo dessa ponte.
Quem me dera estar mais próxima do eixo das discussões.

bjs
Ju

Anônimo disse...

Olá!

Estou escrevendo um projeto de identificação molecular de invertebrados e, portanto, tenho estudado a utilização do COI para este fim. Ao ler os artigos tive uma dúvida que, a princípio me parece simples de ser resolvida, mas que ainda não consegui achar uma fonte para solucioná-la.
Como você está envolvida no assunto há mais tempo, talvez possa me ajudar: no artigo do Former e cols. (1994) ele diz que os primers LCO1490/HCO2198 amplificam um trecho de 710pb. Já os trabalhos posteriores, inclusive Herbert et al. (2003), trazem um tamanho de amplificação do gene de 658pb. Você sabe me dizer o porquê desta divergência? É devido a inserções em D. yakuba?

Desde já agradeço sua atenção.